março, 21 ~ a árvore, a poesia
POESIA
Esta árvore entrou no meu corpo, com as suas raízes
de fogo; devorou-me a alma, com os ramos acesos da
inspiração; corroeu cada canto do meu ser, com as
folhas brancas da sua ânsia; e em cada primavera deu
a flor mais inesperada, com a música das suas pétalas,
e o brilho da imagem que se abre quando o olhar
procura o centro da corola. É uma árvore que não seca,
nem precisa de água; que não perde folhas e flores,
apesar de invernos e outonos; que partilha o dia
com a noite, quando procuro a sua sombra, e é a sua luz
que me enche. Podia ser uma árvore de ar livre; mas
também cresce nos quartos mais obscuros, nas salas
onde se acumula o fumo e a respiração de quem vive,
nas caves onde a luz não entra. Cortam-lhe em vão as
raízes; em vão tentam apagar o seu fogo: nasce do
ser o húmus que a alimenta; corre nas veias a seiva
que a percorre. Mas não cresce sozinha; e é em ti que
encontra a sua terra mais fértil, no frio do inverno,
o ar que a envolve, quando a tua ausência a asfixia,
a água que as suas flores bebem, na aridez do estio. Tu,
com os teus dedos de hera, os teus lábios de pólen,
e o doce musgo de palavras com que envolves o seu
tronco. Árvore partilhada, abrigando as aves do amor,
deixo que os seus ramos se estendam sobre nós,
com o seu canto de nuvem, e o seu eco de floresta.
Nuno Júdice, O Estado dos Campos,
Publicações Dom Quixote, 2003, pp. 110-111